» Histórias da educação infantil

As pessoas que trabalham com crianças e que desejam ter boas condições de trabalho, para atendê-las da melhor forma possível, certamente ficariam surpresas se soubessem que em outros lugares, em outros momentos, as pessoas demonstravam não saber muito bem o que é uma criança. Parece absurdo, mas é verdade. Como é possível alguém não saber o que é uma criança?

Para responder essa questão  – que parece absurda  – são necessárias algumas informações relacionadas ao passado. Para enfrentar esse problema, é preciso esquecer um pouco a prática para descobrir algo que não se encontra nela. Antes de responder a essa questão, o ideal seria que cada um pensasse na diferença entre o que é ser criança e o que é ter infância.

A criança é aquele ser pequeno em idade, pequeno em tamanho – a criança já existe quando ainda está na barriga da mãe – e que aprende a andar, a falar e a brincar quando não aparecem alguns problemas com sua saúde. E mesmo aquela que tem alguma limitação, como a surdez, a cegueira, ou qualquer dificuldade de movimento e/ou aprendizagem, é alguém tão criança como qualquer outra. Essa criança um dia aparece para fazer parte de nosso trabalho. Um dia os educadores passam a fazer parte de sua vida e ela da vida de cada educador, mesmo com muitas dificuldades de parte a parte.

A criança, justamente pelo fato de depender do adulto para quase tudo (e porque precisa aprender o tanto que o mundo tem para ensinar), precisa também de tempo para crescer em paz e, aos poucos, deixar de ser criança, virar moça ou rapaz e, devagar, caminhar para a vida adulta. Pois, então, a infância é tempo de ser criança. Quanto dura esse tempo? Isso varia de pessoa para pessoa, de situação para situação, de história para história, de classe social para classe social. Porém, é melhor não pensar a infância apenas como uma “fase†porque assim corremos o risco de achar que todos, na mesma idade, têm que apresentar o mesmo comportamento, como se a vida de todas as crianças fosse vivida da mesma maneira.

Jean Piaget (1896-1980), biólogo e psicólogo suíço, foi um importante teórico do processo do conhecimento humano  (epistemologia). Piaget identificou  quatro  estágios  no desenvolvimento da capacidade de raciocínio do indivíduo, que se sucediam até o início da sua adolescência e correspondiam a sucessivas fases de seu crescimento físico. Essa descoberta tornou-se muito conhecida e

Maria Montessori (1870-1952), médica italiana, elaborou uma teoria científica do desenvolvimento infantil e dirigiu seu trabalho rumo a uma proposta pedagógica. De acordo com sua visão, a criança desenvolve um senso de responsabilidade pelo próprio aprendizado e o ensino deve ser ativo. Sua pedagogia enfatiza a manipulação de objetos para se obter a concentração individual. Assim, a atenção do aluno é desviada do professor para as tarefas a serem cumpridas.

Em muitos livros, principalmente aqueles destinados à formação dos médicos, aparecem várias etapas para indicar o que é a infância. Por exemplo: a infância seria um período dividido em fases de crescimento, sendo a primeira infância o período de 0 a 18 meses. Depois dessa fase, chegaria à segunda infância (de 18 meses a 3 anos), e assim por diante.

Em outros textos, as informações médicas se somam com as análises sociológicas e a infância, muitas vezes, é descrita como um período que vai de 0 a 7 anos de idade. Aliás, em vários locais do Brasil, costuma-se dizer que chegar aos 7 anos é o mesmo que chegar na “idade da razãoâ€.

A análise sociológica é feita levando em conta a vida da pessoa na sociedade em que está. Ao se pensar em alguém, por exemplo, leva-se em consideração seu trabalho, seus ganhos, seus estudos, sua cultura etc. Esse modelo de análise é chamado de sociológico porque observa vários aspectos ao mesmo tempo em relação à vida que se tem em sociedade.

Se estudássemos alguns autores franceses, perceberíamos que, em alguns lugares, a infância passou a ser considerada um tempo especial com duração até os quatorze ou quinze anos de idade. Isso aconteceu especialmente nos locais onde a possibilidade de se permanecer no colégio “esticou†o tempo de ser criança. Isso se dava porque a permanência nesses colégios mantinha a criança separada do mundo dos adultos.

Nos mais variados lugares, ser criança, ter infância, foi e tem sido mais difícil do que fácil. Não é raro encontrar uma menina de onze ou doze anos trabalhando em casa de família, lidando com fogão, roupa e casa e, ainda, tomando conta de outras crianças! Muitas vezes aquela que toma conta tem a mesma idade daquela que está sendo vigiada (só que uma pode ser criança, a outra não). Pouco adianta cada uma dessas crianças estar com o “tempo do corpo†andando da mesma forma. Ser criança depende de se ter ou não o direito à infância.

Em alguns momentos, por exemplo, discutiu-se no Brasil que a partir dos 9 anos de idade qualquer um poderia ser julgado e condenado se cometesse um crime. Isso é uma demonstração de que mesmo as autoridades, em certos momentos, demonstraram ter uma compreensão bastante estreita sobre o que é a criança, uma vez que consideraram a infância um período que se encerra aos 9 anos. Isso aconteceu no começo do século XX, em Salvador, na Bahia.

Em São Paulo, em 1935, um diretor de um reformatório-modelo afirmava que a infância da criança pobre deveria acabar antes, já que essa criança rapidamente precisaria encontrar trabalho e que, por isso, a escola deveria ser reconhecida como uma “ilusão†para essas pessoas que ele considerava condenadas a tão-somente trabalhar. Como se vê, não basta alguém afirmar que sabe o que é uma criança. É necessário verificar se essa pessoa entende que sem o direito à infância não há como ser criança.
Por isso, há uma distância enorme entre aquelas crianças que conseguem ter infância e aquelas que não conseguem. Nós nos achamos em um mundo cujas instituições e cujos costumes indicam ser necessário lutar para que todas as crianças tenham direito à infância.

Estudar um pouco a história da Educação Infantil significa chegar mais perto dos momentos nos quais homens e mulheres criaram lugares para cuidar, para escolarizar, enfim, para receber as crianças. As formas que tais instituições assumiram em diferentes situações muitas vezes se relacionaram com as idéias de ordem, progresso e prosperidade (e assim por diante) produzidas de diversas formas pela sociedade.
Com isso se quer dizer que na história das creches, dos jardins-de-infância e das pré-escolas encontra-se também a história do trabalho, de quem trabalha e de quem manda trabalhar. Acha-se também a história das pessoas que encontraram no cuidado da criança uma profissão, um lugar para construir a própria identidade.

Instituições destinadas ao cuidado de crianças entre 0 e 6 anos de idade começam a surgir na Europa, em vários países ao mesmo tempo, do início até a metade do século XIX. Diferentes idéias, diferentes modelos de organização dos lugares e diferentes opiniões sobre o que fazer com as crianças enquanto permanecessem nessas instituições marcam a origem desses lugares.

Essa variedade é compreensível. As instituições, ainda que tenham o mesmo nome e até a mesma finalidade, não são idênticas, independentemente do lugar onde apareçam. As instituições, embora sejam inspiradas em modelos e idéias que se espalham às vezes até internacionalmente, acabam funcionando bem ou mal conforme a força política de quem a instala ou conforme a compreensão predominante sobre o que é infância, o que é assistência, o que é escolarização etc.

Especialmente no campo da Educação Infantil, muitas vezes o que tivemos foram “políticas pobres para pessoas pobresâ€, como disse Fúlvia Rosemberg. Quando isso ocorre, não adianta muito avaliar se a ação institucional foi eficiente ou precária. Se o projeto que cria uma instituição para a criança se baseia na idéia de que crianças pobres merecem “apenas†um tratamento pobre, a precariedade da instituição não poderá ser vista como um problema administrativo ou como um problema dos educadores que por lá atuam. Na realidade, a instituição só está fazendo o que dela se espera, ou seja, atender de forma insuficiente àqueles que não são considerados a parte “mais importante†da sociedade.

As instituições de Educação Infantil começaram a crescer quando parte da Europa se industrializou e, como conseqüência, provocou o aparecimento de grandes cidades.A vida industrial e urbana despertou a atenção para novas questões, algumas das quais causavam preocupação entre os setores mais enriquecidos daquelas sociedades.

Por exemplo, o trabalho industrial e a vida nas cidades mobilizaram políticos e
representantes das elites para que aqueles novos espaços fossem “disciplinados†e “controladosâ€. Muitas instituições criadas para cuidar da infância surgiram motivadas pelo fato de que muitas mães estavam sendo deslocadas para o trabalho industrial e as ruas estavam sendo ocupadas por crianças pobres. Essa situação deu origem a alguns preconceitos contra a criança pobre. É comum encontrar em nossa história opiniões que demonstram “medo†em relação às ruas, como se as crianças pobres fossem candidatas à delinqüência. Por isso, muitos reforçaram esse tipo de preconceito quando disseram que cuidar da criança era necessário para combater o crime, como se o cuidado e a educação não fossem direitos da criança e sim uma espécie de “vacina†contra problemas sociais. Nesse sentido, as ações de instituições religiosas e caritativas, de várias tendências, acompanharam de perto o que ocorria com mães e crianças marcadas pelas transformações no mundo do trabalho.

À medida que as transformações ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XIX, favoreceram a divulgação de idéias e de projetos, as instituições de Educação Infantil passaram a ser conhecidas internacionalmente, chegando inclusive ao Brasil.

Na França, lugar de origem da palavra creche, esta instituição recebia crianças de 0 a 2 anos de idade. Quando não era mais possível permanecer na creche em razão da idade, a criança ia para as salas de asilo, que se destinavam às crianças de 3 a 6 anos de idade. Com o passar do tempo, a creche e as salas de asilo se tornaram etapas que antecediam a escolarização, embora isso não conseguisse abranger toda a população infantil. Muitas escolas (que mais tarde receberiam o nome de escolas maternais) surgiram como aperfeiçoamento das salas de asilo francesas. Mas não se pode dizer que somente a França criou “modelos†de instituições. Algo semelhante estava acontecendo, por exemplo, na Itália, na Inglaterra e, principalmente, na Alemanha, sobre o que falaremos um pouco mais adiante.

O surgimento da Educação Infantil no Brasil

O sistema republicano, no Brasil, é relativamente novo, tendo seu início somente em 1889. Embora existissem instituições destinadas à infância no sistema, que era o monárquico, somente após a chegada da República é que essas instituições cresceram em número.

Antes disso, o que se via mais constantemente, eram tentativas de proteger a infância, fosse por motivação política, econômica ou religiosa e, nesse caso, predominava a ação caritativa relacionada à criança desamparada.

A partir de 1880, já se falava com mais freqüência em jardins-de-infância, e alguns textos de grande repercussão, como uma lei de 1879, assinada por Leôncio de Carvalho, ministro do Império, ou um Parecer assinado pelo jurista Rui Barbosa em 1882, indicavam claramente a necessidade de oferta de Educação Infantil por parte do Estado.

Já havia, inclusive, um jardim-de-infância particular instalado no Rio de Janeiro por iniciativa de um médico chamado Joaquim José Menezes de Vieira, desde 1875, sobre o qual falaremos um pouco mais à frente. Norte-americanos, membros da Igreja Batista, também atuavam nessa área, especialmente no Estado de São Paulo. Esses dois exemplos, brevemente citados, já demonstram uma característica presente na história da Educação Infantil no Brasil: a menor presença governamental e a maior presença da iniciativa particular.

A creche é uma instituição do Brasil república. Moysés Kuhlmann Jr., pesquisador brasileiro, relata que a primeira creche surgiu ao lado da Fábrica de Tecidos Corcovado, em 1899, no Rio de Janeiro. Naquele mesmo ano, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro deu início a uma rede assistencial que se espalhou por muitos lugares do Brasil.

Cabe prestar atenção à história de um argumento. O Instituto de Proteção e Assistência à Infância foi lugar de atuação de dois médicos, pai e filho, Carlos Arthur Moncorvo e Carlos Arthur Moncorvo Filho. A ação de ambos deu mais vida àquilo que se chamava então “pediatria científicaâ€, no Brasil. Isso queria dizer, naquele momento, que a medicina possuía conhecimentos considerados adequados para a utilização nas instituições de educação e assistência à infância.

Quando, em 1919, Moncorvo Filho fundou o Departamento da Criança no Brasil, espalhou-se a idéia de que a assistência poderia ser científica também e, com isso, resolver problemas ligados à pobreza com base no conjunto de conhecimentos mais adiantados que circulavam naquele contexto. Na verdade, o que se viu foi a utilização dos argumentos médicos e psicológicos de uma forma bastante preconceituosa contra crianças pobres.

Como isso acontecia? Isso acontecia medida que os homens que falavam em nome da ciência divulgavam a idéia de que os pobres, se não fossem disciplinados e amparados, fatalmente entrariam no mundo crime ou da vadiagem.

As creches aumentaram ainda mais quando, em 1923, as autoridades governamentais reconheceram a grande presença feminina no trabalho industrial. Isso fez com que as indústrias fossem pressionadas a reconhecer o direito a amamentar. Tanto na indústria quanto no comércio essa medida provocou a expansão de creches. Essa situação colaborou para que, em 1932, o trabalho feminino fosse regulamentado.
Quando o governo de Getúlio Vargas apresentou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), constava entre as obrigações dos estabelecimentos com mais de 30 mulheres empregadas, a manutenção de creches para as crianças na “primeira infânciaâ€.

Já existia uma Inspetoria de Higiene Infantil desde 1923, mas só em 1934 é que foi criada uma Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância, chamada, a partir de 1937, Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância.

Estávamos na década de 30. Em muitas cidades podia-se encontrar escolas maternais que recebiam crianças de 2 a 4 anos, ocorrendo, porém, muitas vezes, a entrada de crianças com menos de 2 ou com mais de 4 anos em tais instituições. Os jardins-de-infância, para crianças com 5 e 6 anos, faziam parte da mesma paisagem.

Quando algumas creches passaram a ser designadas como berçários, isso queria dizer que estavam abertas para crianças de 0 a 2 anos de idade. Se, na seqüência, o maternal passou a atender a faixa de 2 a 4 anos e o jardim-de-infância de 4 a 5 anos de idade, percebe-se que, mesmo com grande irregularidade e muita precariedade, a sociedade reconheceu que num período chamado infância existiam várias etapas relacionadas ao tempo de ser criança.

Em 1940, entrou em cena o Departamento Nacional da Criança que, em 1942, apresentou à sociedade um plano de instituição única para a assistência à infância. Seria a “Casa da Criançaâ€, local onde funcionariam, ao mesmo tempo, o berçário, o maternal, o jardim e a pré-escola. Algumas cidades mantiveram suas “Casas das Crianças†por muito tempo, ainda que nem todas conseguissem manter os níveis diferenciados de assistência.

A partir da década de 30, uma série de iniciativas relacionadas à Educação Infantil chamava a atenção. Na cidade de São Paulo, por exemplo, em 1935, sob a direção de Mário de Andrade, no Departamento de Cultura, teve início o projeto dos “Parques Infantisâ€. Era a proposta de lugar para crianças de várias idades, oferecendo atividades para pequenos grupos organizados com crianças de 3 anos, ou grupos com crianças de 4 a 5 anos e mesmo com crianças maiores do que 6 anos de idade, desde que fora do horário escolar ( procure ler o livro de Ana Lucia Goulart de Faria sugerido no final deste texto).

Mais de duas décadas depois, um acontecimento teria conseqüências profundas na vida educacional de crianças pequenas. Foi o que aconteceu em 1961. Naquele ano, após mais de uma década de debates e disputas políticas, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961, que apresentava uma ampla reforma para a educação brasileira. No texto dessa lei, a criança de 0 a 6 anos de idade aparece como dona do direito a receber educação, especialmente em escolas maternais e nos jardins-de-infância.

Enquanto se percebe que as mudanças no mundo das leis interferiram também na história da Educação Infantil, é necessário prestar atenção a um aspecto dessa história quase invisível, mas muito importante. Trata-se da ação das agências internacionais tentando impor um padrão de atendimento à infância junto aos governos dos países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil passou a ser chamado recentemente.

Entre as agências internacionais, o Fundo das Nações Unidas para a Infância,
conhecido como UNICEF, da Organização das Nações Unidas, a ONU, foi (e de certa forma ainda é) uma das mais fortes influências. Para se ter uma idéia dessa influência, um dos documentos mais citados por estudiosos da história da Educação Infantil, não só no Brasil como na América Latina, é um documento publicado pelo UNICEF como resultado de uma conferência organizada em 1965 intitulada “Conferência Latino Americana sobre a Infância e a Juventude no Desenvolvimento Nacionalâ€.

Em 1971, em meio às dificuldades provocadas pela ditadura sob a qual vivíamos, foi aprovada uma reforma educacional sempre lembrada pelo seu número: Lei 5692/ 1971. Essa lei reformou os ensinos primário, ginasial e secundário. A Lei nº 5692, de 11 de agosto de 1971, transformou o ensino primário e o ginasial em ensino de primeiro grau, com duração de oito anos com oito séries. O secundário foi transformado em ensino de segundo grau, com objetivos marcados pela idéia de profissionalização.

Este não é o lugar para discutirmos os resultados dessa lei, os quais foram bastante danosos para o Brasil como um todo e para sua juventude de forma particular. O que temos que comentar é que para a Educação Infantil essa lei foi uma tragédia, uma vez que ela praticamente retirou dos governos quaisquer obrigações escolares relacionadas às crianças pequenas. Para se ter uma noção da distância que o Estado tomou das suas obrigações em relação à questão, vamos ler um pequeno trecho da lei:

–   “Os sistemas de ensino velarão para que as crianças de idade inferior a sete anos     recebam conveniente educação em escolas maternais, jardins de infância e     instituições equivalentes.†(Lei nº 5.692/1971, art. 10, parágrafo 2º, capítulo II).
Digamos com clareza: é pouco!

Como ficou então? Para compreender o que se passou, convém prestar atenção num projeto, o Projeto Casulo.

Os militares que ocupavam o governo na década de 70, os grupos que sustentavam política e economicamente aquela situação de ditadura e vários organismos internacionais dividiam a mesma opinião sobre a pobreza. Dizia-se que a pobreza é perigosa, que pode “fabricar†problemas sociais se não for pelo menos um pouco atendida e que, dentro da vida dos pobres, cuidar das crianças seria uma forma de prevenir problemas sociais e, ao mesmo tempo, continuar liberando mães para o trabalho.

O Projeto Casulo foi desenvolvido pela Legião Brasileira de Assistência, a LBA, a partir dos anos de 1976 e 1977. Tratava-se de um projeto que se propunha a “baratear†o atendimento às crianças pobres espalhando redes de atendimento baseadas no trabalho voluntário e sem a elaboração considerada “mais sofisticada†de instituições como a Casa da Criança, por exemplo.

Era um plano de atendimento de massas que pregava a prevenção dos problemas sociais mediante o amparo das mães e das crianças, não com programas educacionais, mas com ações destinadas a resolver problemas específicos como “tomar conta†ou “dar merendaâ€, ou, ainda, campanhas voltadas para a doação de agasalhos.

Como esse tipo de ação “preventiva†se fortaleceu, a multiplicação dos jardins-de-infância mantidos por iniciativa governamental viveu grande crise. Essa crise também pode ser entendida se lembrarmos que, em 1968, o UNICEF havia sugerido que seria mais barato criar salas de pré-primário do que aumentar instituições para crianças pequenas. Nesse caso, a ampliação da oferta de classes de pré-primário se tornava uma perda. Daí ter havido um ataque a essa instituição, o jardim-de-infância, que se tornava cada vez mais, e às vezes com outros nomes, parte de um conjunto de instituições não destinadas à maior parte das crianças brasileiras entendidas como merecedoras não de políticas educacionais, mas de políticas, quando muito,
assistenciais.

A História dos Jardins-de-Infância

Quando afirmamos que na história dos jardins-de-infância existem algumas questões que devem ser vistas com atenção porque são diferentes daquilo que aconteceu com as creches, maternais, asilos etc., não devemos entender que a história das creches sempre foi só assistencial e a história dos jardins-de-infância sempre foi mais próxima do campo educacional. Essa divisão, na realidade, quase nunca aconteceu.

 Os jardins-de-infância também surgiram para atender às mães pobres que trabalhavam e precisavam de um lugar para a guarda e educação de seus filhos.

Pelo que temos registrado até hoje, alguns nomes, em alguns países, marcaram o início da vida de instituições voltadas para a Educação Infantil. Às vezes a história do mundo parece ser a história da Europa – o que não é verdadeiro. O fato é que não trabalhamos com informações sobre a Ãfrica ou a Ãsia, por exemplo. Sendo assim, a história das instituições européias parece ser, o tempo todo, uma espécie de passado das nossas. Isso é um pouco verdadeiro e um pouco artificial, porque, na realidade, cada lugar faz sua própria história ainda que pareça estar seguindo modelos.

Na França, por exemplo, um nome – Oberlin – é associado ao início da história das instituições de Educação Infantil, isso já em 1769. Na Suíça, em Yverdon, o grande nome é Pestalozzi. Já na Escócia, Robert Owen criou uma escola para crianças de grande repercussão e essa instituição tornou-se alvo de disputas sobre qual modelo realmente foi o primeiro a inaugurar experiências de Educação Infantil.

Entre tantas influências que ajudaram a fazer circular modelos de Educação Infantil, talvez o mais influente e mais citado seja aquele criado na Alemanha pelo pedagogo Friedrich Fröebel (1782-1852), chamado kindergarten e que deu origem à denominação jardim-de-infância, isso em 1840. Esse modelo foi, mais tarde, bastante reelaborado nos Estados Unidos.

Muitos jardins-de-infância foram instalados no Brasil, em vários Estados, com afirmação de que se estava criando, no local, um kindergarten brasileiro para aplicar aqui um “modelo froebelianoâ€. Esse modelo, vale lembrar, foi bastante difundido por missões protestantes que espalhavam suas missões em locais os mais variados, o que inclui o Brasil.

Foi mencionado que já em 1875 um “jardim de crianças†funcionou no Rio de Janeiro por iniciativa do médico Menezes de Vieira. Esse primeiro jardim de crianças era oferecido às crianças ricas e era comentado por utilizar o método alemão. As atividades nessa instituição levavam à escolarização da criança, porque eram oferecidas atividades de leitura, escrita, cálculo, jardinagem e ginástica. Utilizava-se muito uma “caixa de lições de coisas†com objetos e informações relacionadas à origem dos instrumentos, ao desenvolvimento dos sentidos e ao treino da observação. Se quisermos indicar as principais atividades realizadas pelas crianças nessa instituição, poderíamos afirmar com certeza que, mesmo com grande variedade, tudo girava ao redor da educação do corpo e o aprendizado da higiene.

O jardim-de-infância não foi sempre aceito pacificamente. No final do século XIX, quando se espalhavam, várias vozes se levantaram para protestar contra a instalação dos jardins-de-infância. De uma forma geral, os vários argumentos repetiam que a instituição não poderia ser considerada “de ensinoâ€, mas, sim, “de caridadeâ€. Tais reclamações tinham pouco efeito porque a maioria das instituições nesse campo era particular.

O modelo de escolarização instalado em São Paulo na última década do século XIX, juntamente com o grupo escolar – a escola dividida em séries, com a Escola Normal reformulada para formar professores e uma nova idéia de “ginásio de Estadoâ€Â acabou se firmando como modelo que, ilusoriamente, parecia estar sendo repetido em vários outros Estados. O modelo escolar paulista previa a instalação de um jardim-de-infância para que o mesmo fosse uma “escola-modelo†para os professores da Escola Normal aprenderem o que se chamava então de práticas de ensino.

O diretor da Escola Normal entre 1892 e 1897, Gabriel Prestes, foi um dos grandes responsáveis pela instalação do jardim-de-infância completando as reformas educacionais que estavam sendo feitas em grande quantidade.

Aquele jardim-de-infância, que se firmou na nossa memória como modelo, era oferecido para crianças de  3 a  6 anos de idade. Aquelas técnicas  “froebelianasâ€Â mencionadas anteriormente tinham tanto prestígio que foram citadas no texto do Regulamento da Escola Normal, tornando-as obrigatórias para o “professor de jardimâ€.

Carlos Monarcha, historiador brasileiro, lembra que a expressão jardim-de-infância criava uma comparação entre a primeira infância e o cultivo de plantas, um jeito de pensar o trabalho com crianças a partir das idéias de Fröebel. O trabalho do professor, nesse sentido, era comparado ao do jardineiro cuidadoso.

Em 1920, uma reforma de ensino feita por Antonio Sampaio Dória criou uma nova definição para o jardim-de-infância. Segundo essa nova definição, caberia ao jardim-de-infância ligar a escola à família. Nesse período, vários documentos e publicações que defenderam a importância dos jardins-de-infância apresentaram claramente a idéia de que esse tipo de instituição não poderia ser confundido com a creche.

Historicamente, na maioria das vezes em que se comparou a ação das creches em relação à ação dos jardins-de-infância, foi possível perceber que por muito tempo a creche não foi considerada parte da história da educação, não só porque a lei não a reconhecia como parte do sistema educacional, mas também porque se consolidou a imagem da instituição voltada para dar assistência ao pobre.

Quando da transformação de nosso sistema de governo em República, em 1889, os “republicanos†tentaram fazer da escola um lugar onde as crianças receberiam a instrução necessária para que ajudassem o país a ser mais moderno, mais disciplinado e até para ter mais higiene. Em alguns lugares, o jardim-de-infância foi considerado parte importante do ensino primário, da escola que passava a ser dividida em séries e, por isso, passou a ser chamada de escola seriada.

De uma forma geral, o que não deixou de se repetir na maioria das cidades brasileiras foi a demarcação de lugares: aqui para pobres, ali para os não-pobres. Não se pode esquecer que as leis são produzidas pela sociedade e a sociedade é influenciada pelas leis.

Em 1974, por exemplo, o então Ministério da Educação e da Cultura criou um Serviço de Educação Pré-Escolar, chamado SEPRE. Em 1975, é criada a Coordenadoria de Educação Pré-Escolar, a CODEPRE. Até o Movimento Brasileiro de Alfabetização, o MOBRAL, foi envolvido com a oferta de pré-escola para crianças de famílias pobres. O que se vê em iniciativas dessa natureza é a idéia de que instituições pré-escolares devem custar pouco, porque o mínimo que se puder oferecer já será o suficiente para quem vive em grandes dificuldades e, principalmente, para não “estourar†o orçamento governamental.

A repetição dos mesmos problemas em lugares diferentes, ainda que cada lugar
faça sua história com personagens próprias, nos ajuda a entender porque muitas pessoas consideraram que a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional trouxeram avanços e vitórias para a área da Educação Infantil.

A Constituição de 1988, pela primeira vez na história do Brasil, reconheceu um direito próprio da criança pequena que era o direito à creche e à pré-escola. O Estatuto da Criança e do Adolescente, com base na Lei nº 8.069 de julho de 1990, repetiu em seu Artigo 54 que o Estado tem o dever de oferecer às crianças de 0 a 6 anos de idade o atendimento em creches e pré-escolas. O que a Constituição fez, ao reconhecer a vida de 0 a 6 anos como parte do sistema educativo e o que o Estatuto da Criança e do Adolescente fez ao cobrar isso como dever do Estado, em ambos os casos, foi tornar oficial algo que há muito vinha sendo exigido por vários movimentos sociais relacionados às mulheres, às crianças e aos trabalhadores de uma forma geral.

Foi na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB Nº 9394/1996, que o termo Educação Infantil ganhou a forma mais favorável à criança pequena desde que existe legislação educacional no Brasil. A LDB declara que a Educação Infantil começa dos 0 aos 3 anos de idade para quem precisa estar numa creche, prosseguindo dos 3 aos 6 anos de idade como pré-escola, tornando-se a Educação Infantil, também, um ciclo de 6 anos de formação contínua e parte integrante, constituidora, da Educação Básica brasileira.

A separação entre escolarização e assistência, muitas vezes, teve como resultado o fato de que nas creches e nas instituições pré-escolares, de uma forma geral, houvesse a exigência de formação profissional para que o trabalho fosse diferenciado em relação aos outros níveis de ensino. Principalmente nas grandes cidades, como São Paulo, isso fez com que um triste encontro acontecesse. Se “cuidar†era considerado um “serviço menorâ€, o profissional envolvido com essa atividade também teve que arcar com as conseqüências sociais de ser considerado um “profissional menorâ€, adequado à pouca importância que se dá ao cuidado com a infância.

A pouca exigência em termos de formação escolar também pode ser vista de um outro lado, o lado heróico. Nesse sentido, tornar-se profissional de creches ou de instituições pré-escolares, em várias cidades, significou para muitas mulheres escapar de uma vida ainda mais miserável e encontrar no trabalho junto à chamada primeira infância um lugar, ainda que precário, no mundo do trabalho.

É necessário, para encerrar, pensar em algo que faz parte da história da infância no Brasil e que também está relacionado à história das instituições.

Ao longo de anos, décadas, séculos, o Brasil acumulou uma grande dívida social para com sua infância. Por isso, na história das instituições que se abriram para o cuidado de crianças pequenas, são muitas aquelas que se dedicaram a receber crianças abandonadas, crianças portadoras de doenças incuráveis, crianças órfãs etc. Nesse caso, estamos falando de lugares como os patronatos e os preventórios. Trata-se de uma realidade dramática, especialmente quando se toca nos exemplos do abandono, da orfandade, da criança cujo pai (ou mãe) está preso, enfim, de um mundo que  normalmente está ou no meio das falas assistenciais, ou no meio das falas policiais.

Esse aspecto da história da infância no Brasil mostra com mais clareza a herança de um país que teve até pouco tempo a escravidão. Um país que teve escravos custa mais a admitir que o trabalho não é algo menor, feito por pessoas menos qualificadas.
Da mesma forma, custa bastante aceitar que cuidado e educação não podem ser separados, nem colocados “um debaixo do outroâ€. Um país que precisa escrever um Estatuto da Criança e do Adolescente mostra que a história da Educação Infantil é também a história de um passado que, esperamos, não se repita no futuro.

SUGESTÕES DE LEITURA

ÃRIES, Phillippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1990.

FARIA, Ana Lucia Goulart. Educação pré-escolar e cultura: para uma pedagogia
da educação infantil. São Paulo/Campinas: Cortez Editora e UDUNICAMP, 1999.

FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

KINDERSLEY, Barnabas e Anabel. Crianças como você. São Paulo: Ãtica, 1995.

KUHLMANN Jr., Moysés. Infância e educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998.

MONARCHA, Carlos (org.). Educação da infância brasileira (1875-1983). Campinas: Editora Autores Associados, 2001.

PORTO, Cristina; HUZA, Iolanda; AZEVEDO, Jô. Trabalho Infantil – o difícil sonho de ser criança. São Paulo: Ãtica, 2003.

PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Editora Contexto,
1992.